A nova esquerda

Dentro da pior tradição latino-americana de definição ideológica rasa, as manifestações de defesa dos mercados são usual e rapidamente taxadas de direitismos. E os pensamentos da direita, como aprendemos desde cedo, seriam desumanos, contrários a qualquer noção de justiça social. Como quase todo simplismo, este também está errado.

A divisão entre as ideologias de direita e de esquerda não pode ser feita nos moldes aplicados até algumas décadas atrás. Bresser-Pereira propõe uma esclarecedora divisão histórica, por meio da qual são identificados marcos históricos que transformaram a velha esquerda em nova esquerda, assim como ocorreu com a direita, que se renovou por meio de uma transformação de conteúdo derivada da evolução da história.

A velha direita acreditava que o Estado teria condições de controlar a economia, promovendo o desenvolvimento econômico por meio de planos criados nos gabinetes dos burocratas. Outra característica deste período era a crença de que o incremento dos índices econômicos seria suficiente para revelar o desenvolvimento de um país, sem nenhuma consideração a fatores como a redistribuição social das riquezas e a sustentabilidade dos processos de desenvolvimento. Este modelo foi substituído, na década de 1970, pelo mito neoliberalista, sem dúvida a mais frágil das concepções teóricas de estruturação socioeconômica, fundada na inocente crença de que o mercado seria capaz de construir soluções que unissem eficiência com justiça social. Evidente que a maximização dos lucros preponderaria onde não houvesse intervenção estatal na economia. Assim, o conjunto de percepções econômicas que pode ser colocado debaixo do teto da direita passou da atuação estatal absoluta para o completo afastamento do Estado das questões econômicas. Em ambos os casos, políticas que se mostraram ineficientes.

Já a velha esquerda teria como objetivo central a apropriação estatal dos meios de produção, formando-se uma sociedade comunitária e solidária. A queda do Muro de Berlim, em 1989, marcou o fim da utopia comunista, cujas falhas conceituais e fragilidades sociais vinham se revelando havia décadas. A partir de então, formulou-se um novo ideário para a esquerda, em que o mercado deixaria de ser visto como um inimigo a ser combatido para ser compreendido como um ambiente a ser controlado pelo Estado, seja para evitar os desvios que naturalmente ocorrem no desenvolvimento de atividades empresariais de grande porte (em especial quando há controle de mercado relevante), seja para fomentar um ambiente de segurança econômica, que propicie a geração de empregos e o custeio, via tributação, das políticas sociais.

Esta linha de pensamento tem sido designada de terceira via, nomenclatura proposta pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, considerado o mentor da renovação da socialdemocracia europeia.

Ainda antes de Giddens, contudo, esta nova forma de pensar a esquerda já era encontrada na Alemanha, país que pode ser considerado berço do debate social e do surgimento dos mais relevantes movimentos da esquerda mundial. Afastado do governo, o partido socialdemocrata alemão (SPD) formulou, em 1959, o Programa de Godesberg, cujos principais aspectos foram o respeito ao mercado e a revisão das políticas previdenciárias. O programa viabilizou uma aproximação com o Partido Liberal, de orientação direitista. Formou-se então uma coalizão entre os dois partidos, que governou a Alemanha entre 1969 e 1982. Neste ano, o SPD rompeu o acordo, por não aceitar fazer reformas mais profundas no sistema previdenciário. Perdeu as eleições, e somente retomou o governo federal em 1998, com a neue mitte proposta por Gerard Schoeder, cuja essência era a redução dos benefícios previdenciários, bem como de certos direitos trabalhistas, para devolver a competitividade regional à indústria alemã. Tais propostas não vieram da direita alemã, mas sim de sua nova esquerda.

Dentro do ideário socialdemocrata europeu, a defesa dos mercados não constitui um pensamento retrógrado de direita, mas sim um caminho necessário para a consecução das políticas sociais sempre vislumbradas pelos pensadores de esquerda.

Daí se compreende a conclusão de Bresser-Pereira, no sentido que a globalização, para a direita, é uma oportunidade; para a velha esquerda, uma ameaça; para a nova esquerda, um desafio.

Neste quadro, constatamos a existência um núcleo comum entre as atuais linhas mestras de pensamento de direita e de esquerda, consistente na premissa de que a economia de mercado deve florescer. Também, nos dois casos, são evidentes as boas intenções para superar das desigualdades sociais. A diferença essencial entre a direita e a esquerda é que esta aceita subverter a ordem em busca da justiça social, enquanto aquela busca o máximo de justiça social dentro da ordem vigente.

Voltando à estrutura do atual pensamento socialdemocrata europeu, é interessante abordar algumas de suas preocupações essenciais.

Uma premissa inicial vem no sentido de que a defesa do mercado não se confunde com a do livre mercado. A atividade econômica de grande porte pode gerar desvios que devem ser sanados pelo Estado, e não pelo próprio mercado. Assim, busca-se o florescimento do mercado, mas não por meio de políticas neoliberais.

Esta orientação é fruto da lógica de que a distribuição dos resultados é uma preocupação tão relevante quanto a viabilização de sua produção. Afinal, a economia de mercado ajuda a erradicar a pobreza, mas também a gera, especialmente em uma época em que o conceito tradicional de emprego torna-se fluído, e em que a sociedade se estrutura em torno do conhecimento. Não se trata de uma divisão de classes entre ricos e pobres, mas entre instruídos e ignaros, tanto no aspecto individual quanto no coletivo.

Neste contexto, o Estado deve atuar em duas frentes: deve incentivar o desenvolvimento social, mas também auxiliar os excluídos. Esta ajuda, contudo, deve se dar de forma eficiente, seja para preservar a viabilidade econômica do sistema previdenciário, seja para incentivar os beneficiados a superar a situação de pobreza. Há, assim, necessidade de uma redefinição (flexiguridade, no conceito holandês) de modelo, com algumas medidas possíveis, tais como a limitação do nível de benefícios aos marginalizados, a exigência de estudo para os que gozam de tais benefícios e a obrigatoriedade de cadastramento em agências estatais de emprego, com inadmissibilidade de rejeição de ofertas de emprego. Para Gosta Esping-Andersen, “a política social precisa mobilizar e maximizar ativamente o potencial produtivo da população de modo a minimizar sua necessidade e dependência dos benefícios do governo”. Não se vê a pobreza como derrota definitiva, mas como algo a ser superado.

Outro campo que tem gerado intensos debates no panorama europeu e é redefinição do conceito de emprego, bem como de sua tutela. O emprego formal tende à redução drástica. Nossa legislação baseia-se numa concepção fordista de empregos, que não é mais real. Na Europa, há 25 anos, 40% da força de trabalho estava alocada no setor manufatureiro; hoje, são 18%. Estima-se em que breve chegue a 10%, em fenômeno análogo ao que ocorreu com a agricultura. A sociedade está estruturada na prestação de serviços e no desenvolvimento de tecnologias. Neste panorama, tem-se buscado a flexibilização nas jornadas de trabalho, o que facilita a manutenção de famílias com dupla renda, com os benefícios sociais dela derivados. Outra tendência é a flexibilização na remuneração, com participação na distribuição de lucros, para que a relação senhor-servo seja substituída pela de colaboradores. Estes fenômenos foram bem estudados por Zygmunt Bauman (Modernidade Líquida).

Não se poderia deixar de mencionar também a preocupação com a sustentabilidade ambiental do desenvolvimento econômico. Preocupação que não se resume à óbvia condenação das atividades poluentes, focando também no incentivo ao desenvolvimento de novas tecnologias. Se dependermos tão-somente das atuais fontes de água, alimentos e energia, seremos alcançados pela lógica de Malthus em um curto espaço de tempo. Assim, ou evoluímos tecnologicamente, ou nossos descendentes próximos testemunharão o fim da espécie.

Se tais orientações não podem ser importadas diretamente para o Brasil, ao menos poderiam servir de provocação para a criação de uma agenda política nacional. Algo que de há muito não se vê em um país em que o debate político tem se limitado a uma troca de acusações entre direita e esquerda, fundada em uma cisão de pensamento que não se coaduna com a evolução histórica da estrutura social.

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