A roupa nova do rei

Os acadêmicos são pródigos em atacar as classes responsáveis por nosso atraso econômico e social. Seu dedo acusador se volta contra tudo e todos. Políticos e outros agentes públicos e privados são massacrados por suas bem fundamentadas críticas. Mas a academia, especialmente no plano da ciência jurídica, continua de olhos fechados para a sua própria responsabilidade neste processo histórico.

Boaventura de Sousa Santos e outros estudiosos de peso têm alertado para a necessidade de revisão de forma de atuação dos professores e pesquisadores, com argumentos epistemológicos de peso.

Já em uma esfera bem mais modesta de argumentação, tenho defendido que a ciência jurídica ganharia muito em valor se fossem superados alguns mitos, entre os quais destaco o da roupa nova do rei.

Há quase duzentos anos, o norueguês Hans Christian Andersen nos contou a história da roupa nova do rei. Um soberano vaidoso e pouco afeto à intelectualidade recebeu a visita de dois caixeiros viajantes, cuja ética era inversamente proporcional à esperteza.

De seu baú, os caixeiros simularam retirar um tecido especial, de rara beleza, e dotado de uma qualidade mágica: somente poderia ser visto por pessoas de superior inteligência. O rei, para não passar por ignorante, assumiu o papel de bobo, e passou a elogiar o tecido, pelo qual aceitou pagar de bom grado uma belíssima quantia de moedas de ouro.

O alfaiate real foi chamado e, já conhecedor da notícia da existência do tecido mágico, derreteu-se em elogios, embora nada visse, e, trabalhando com sua imaginação, confeccionou a roupa nova do rei, que, de tão especial, mereceu apresentação pública.

Na ocasião, o rei foi saudado, o alfaiate real foi aclamado, a roupa foi elogiadíssima, até que um garoto que brincava por perto se voltou para um adulto e questionou a razão pela qual o rei estava nu. De cochicho em cochicho, todos se deram conta do papel ridículo a que se prestaram.

No mundo acadêmico, a roupa nova do rei é vestida por muitos, que reapresentam conceitos superados e superficiais sob a roupagem de uma retórica cada vez mais confusa, que por vezes chega ao ponto do cifrado. Os leitores se debruçam sobre seus pomposos textos, que são lidos, relidos e minuciosamente estudados para que se revele a sua tradução (que normalmente não traz nenhuma inovação). Como a atividade do leitor resume-se à tentativa de compreensão, a análise crítica da tese apresentada (quando há uma tese) quase sempre é deixada em segundo plano. Fechando o ciclo, a ausência de crítica é de tremenda conveniência aos autores destes trabalhos, que assim não precisam se renovar, nem se defender. Resta uma retórica vazia, que merece e tem recebido tantos elogios quanto a roupa nova do rei.

A parte mais triste desta história é que estes autointitulados juristas são aplaudidos, tanto pelos que leram e não entenderam, quanto pelos que não leram, mas ouviram dizer que as ideias do autor são sensacionais, ainda que ninguém saiba explicar ao certo quais sejam. Todos aplaudem textos e exposições tão densas quanto o tecido da roupa nova do rei. E o fazem para não passarem por bobos ao questionar obras clássicas e autores consagrados.

Há na academia um culto à forma, limitando o conteúdo a conceitos superados. Ao se utilizar de uma linguagem cifrada, pretensamente se está a provar a capacidade intelectual do autointitulado professor. E o público que recebe a mensagem derrete-se em elogios ao discurso cifrado, para não passar por alguém que não tem capacidade de compreender a mensagem que deve estar ali, em algum lugar, e que certamente não foi compreendida porque a leitura foi superficial (se é que foi completa).

Para que se pretenda alguma evolução do pensamento científico, é absolutamente necessário abandonar a retórica vazia, as conceituações e classificações inúteis, as demonstrações de erudição inócua. É necessário que as ideias sejam reveladas, debatidas e renovadas, sem que sejamos distraídos pelas tentativas do autor de demonstrar sua nobre (e certamente inalcançável pelos simples mortais) formação.

Neste sentido, elogios devem ser feitos às produções técnicas encontradas no direito norte-americano. Textos enxutos contêm teses avançadas, e a retórica é cada vez mais substituída pela pesquisa. A objetividade pode ser bem percebida quando se constata que a tese dos custos de transação, de Ronald Coase (um clássico da análise econômica do direito que valeu ao seu autor um Prêmio Nobel de economia), tem cerca de 30 páginas, escritas de forma direta e clara.

No campo da substituição da retórica pela pesquisa, pode ser indicado como modelo o trabalho de Angus Maddison (The World Economy A Millennial Perspective). O autor se debruça sobre uma das questões mais debatidas das ciências sociais, que é a análise de valor do capitalismo. Mas, ao invés de desfiar argumentos abstratos sobre a possibilidade de um sistema de economia de mercado apresentar um lado humano, e ao invés de afirmar genericamente que o desenvolvimento social depende de um substrato econômico que só pode ser produzido dentro de uma economia de mercado, o autor trabalha sobre números.

Sua pesquisa é objetiva. Não há discursos, mas análises ponderadas entre tabelas de fácil compreensão. Nelas o autor expõe sua trabalhosa pesquisa, por meio da qual revelou a renda per capita (e outras dimensões, como o nível de desigualdade e o de pobreza) de várias dezenas de países, espalhados por todas as regiões do mundo, em um período histórico que abrange do ano 1000 ao ano 2000.

Se este autor se limitasse a discursar genericamente sobre o papel do Estado no sentido de estimular o desenvolvimento econômico, seu trabalho poderia ser atacado por qualquer outra via de discurso meramente retórico. O justo se transforma em injusto, e mais um livro é escrito. Mas Angus Maddison não discursa. O que importa são os dados.

Cabe aos juristas uma escolha de postura. Ou se produz ciência, trabalhando claramente sobre ideias, expondo-as abertamente à crítica e à eventual assimilação, ou se preserva uma pseudociência peculiar, em que os dotes literários e alguns delírios de oratória bastam para satisfazer a sede por aplausos e admiração.

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