Acionista em potencial conflito de interesses pode ser impedido de votar?

Para celebrar os 45 anos da Lei das Sociedades Anônimas (LSA), especialistas do escritório MBA apresentam série de conteúdos especiais sobre o tema. Confira, no presente artigo, debate sobre a natureza jurídica do conflito de interesses na LSA.

 

A Lei 6.404/76 (“LSA”), em seu art. 115, impõe ao acionista o dever de exercer o seu direito de voto no interesse da companhia. Por interesse da companhia entende-se aquele que está alinhado à consecução do seu objeto social e com o objetivo de gerar valor à sociedade. Votos que não se coadunam com o interesse social podem ser considerados votos abusivos, em conflito de interesse e votos que impliquem benefício particular para o acionista.

O §1º do mesmo art. 115 traz três deliberações em que há impedimento de voto pelo acionista: aquelas que tratam i) do laudo de avaliação de bens com que o acionista concorrer para a formação do capital social; ii) da aprovação de suas contas como administrador; iii) de quaisquer outras matérias que puderem beneficiá-lo de modo particular. Nestas hipóteses, há convergência da doutrina sobre a natureza da vedação estabelecida pela lei: a proibição é absoluta, tem natureza formal.

O mesmo não acontece, porém, com a deliberação em que houver interesse conflitante entre acionista e companhia, onde se vê grande divergência na interpretação da legislação. Alguns defendem que o conflito de interesses tem natureza formal e, por isso, proíbe-se o voto mesmo sem avaliação, no caso concreto, do conteúdo da manifestação. Outros defendem que a natureza do conflito de interesses de que trata a parte final do §1º é material ou substancial, ou seja, é preciso avaliar o mérito do voto para então se concluir se houve (de fato) conflito, o que só se caracterizaria pelo desalinhamento do voto com a obrigação de exercê-lo no interesse da companhia, não bastando, portanto, o potencial conflito de interesses.

Assim, a maior diferença entre as duas correntes doutrinárias está no momento da avaliação da existência do conflito: se antes do proferimento do voto (teoria do conflito formal) ou depois da manifestação do voto (teoria do conflito material ou substancial).

Aqueles que defendem que o conflito tem natureza substancial pregam que o voto não pode ser proibido pelo simples potencial conflito de interesses e a avaliação da existência de fato do conflito deve se dar depois da manifestação do voto, pela análise do seu conteúdo em alinhamento (ou não) com o interesse social da companhia.

Para esta corrente doutrinária, a Lei 6.404/76 dá demonstrações de adoção da teoria do conflito material quando admite (e portanto considerada não espúrias) relações havidas i) entre a companhia e o acionista, inclusive o controlador, desde que em condições equitativas (artigo 117, §1º alínea “f”); ii) entre sociedades coligadas, controladora ou controlada, desde que em condições comutativas ou com pagamento compensatório (art. 245); e iii) entre o administrador e a companhia, desde que em condições razoáveis ou equitativas, idênticas às que prevalecem no mercado ou em que a companhia contrataria com terceiros (art. 156, §1º).

A teoria da natureza substancial do conflito de interesses firma sua posição, também, no fato de que não seria crível presumir que o acionista – em potencial conflito de interesses – votaria contra os interesses da sociedade, presumindo-se que a sua conduta seria de má-fé.

Outro argumento invocado pelos que defendem a teoria da natureza substancial está no disposto no §3º do art. 115 que regula a anulabilidade da deliberação tomada em decorrência de voto de acionista com interesse conflitante e que, portanto – ao menos teoricamente – admitiria o voto em situação de potencial conflito.

A jurisprudência dos tribunais pátrios não é pacífica, mas predominam as decisões que consideram anuláveis – e não nulas – as deliberações havidas em decorrência de votos proferidos com conflito de interesses entre acionistas e companhia. Para anulá-las, então, se mostra essencial a prova da existência do dano à companhia, ou seja, há necessidade de avaliação do conteúdo do voto, o que demonstra a tendência da jurisprudência dos tribunais à teoria do conflito substancial (com análise do mérito do voto).

Há, no entanto, a teoria oposta, segundo a qual o conflito de interesses tem natureza formal. Os que a defendem, respondem o argumento baseado no §3º do art. 115 invocando a necessidade de interpretação sistemática daquela disposição com o §1º do mesmo artigo, e justificam a disposição no fato de que, a despeito da proibição, se o voto em conflito for proferido, é preciso regular a forma de invalidação da deliberação.

Mas o principal argumento em que se apoia a teoria da natureza formal do conflito está na interpretação literal ou semântica do texto do §1º que prevê que “o acionista não poderá votar nas deliberações […] em que tiver interesse conflitante com o da companhia”. Se a lei estabelece que o acionista não pode votar, não parece possível crer que a intenção do legislador tenha sido a de permitir o voto para somente após avaliar o seu conteúdo, mas, ao contrário, de proibi-lo.

Neste fundamento apoiou-se a decisão da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) no Processo Administrativo nº RJ 2009-13179 (“Caso Tractebel”) de setembro de 2010. Os precedentes anteriores seguiam a teoria do conflito material e, a partir do Caso Tractebel, a posição da CVM mudou, passando a adotar o conflito formal, impedindo o voto do acionista mesmo nos casos de potencial conflito de interesse.

Ainda que permaneçam algumas divergências em razão das possíveis composições do colegiado, é possível afirmar que a posição atual (mas não unânime) da CVM sobre a matéria é a de interpretar o §1º do art. 115 da Lei 6404/76 de acordo com a teoria da natureza formal do conflito, o que permite o impedimento do voto do acionista em potencial conflito de interesses com a sociedade.

A CVM ainda enfrenta o tema com pouca frequência, cenário que tende a mudar em razão da recente alteração na redação do art. 122 da LSA (pela nova Lei do Ambiente de Negócios) que incluiu no rol de competências privativas da assembleia, nas companhias abertas, a deliberação da celebração de transações relevantes com partes relacionadas – quando o valor da operação corresponda a mais de 50% (cinquenta por cento) dos ativos totais da companhia no último balanço aprovado.

A nova redação do art. 122 traz à tona – mais uma vez – a discussão sobre a necessidade de se alterar a redação do art. 115 para que se defina, de uma vez por todas, se há impedimento de voto na hipótese de potencial conflito de interesses ou se o voto proferido em ofensa aos interesses da companhia seria anulável depois de proferido.

Já existiram outras tentativas sem sucesso de alteração da redação do art. 115 e ainda tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei que 6103/2019 (autoria de Jerônimo Goergen) que visa, entre outras mudanças, a alteração do §1º do mesmo artigo, permitindo o comparecimento e manifestação do acionista na assembleia-geral, acerca de temas específicos nos quais pode haver interesse conflitante com o da companhia. Defende o autor do Projeto que “deve prevalecer […] a adoção da visão substancialista (ou material) do direito de voto em operações nas quais o acionista seja interessado” já que – para ele – “a tese do conflito formal prejudica o dia a dia das companhias brasileiras e parte do equivocado pressuposto de má-fé por parte do acionista que manifesta voto nessas oportunidades”.

É certo que a divergência de interpretações entre a doutrina, a CVM e os tribunais sobre a norma, acaba por causar insegurança jurídica no mercado, mostrando-se razoável que o legislativo se posicione sobre o tema, encerrando as controvérsias e privilegiando a melhoria do ambiente de negócios brasileiro.

 

*Carmela Manfroi Tissiani é sócia do Marins Bertoldi Advogados, especialista em Direito Processual, atuante no Contencioso Empresarial.

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