Dispensa de apresentação de CNDs – Um benefício questionável

A Lei Complementar 123/2006 previu a dispensa de apresentação de certidões negativas de débito para a prática de atos societários, entre os quais se inclui a extinção da sociedade frente à Junta Comercial. Acreditamos que se trata de uma medida equivocada, que não colabora para a criação de atividades empresariais de pequeno porte e gera prejuízos no campo da distribuição da responsabilidade pela arrecadação tributária.

Está na cartilha básica de qualquer programa de desenvolvimento econômico a necessidade de apoiar o empreendedorismo de pequeno porte. Entraves burocráticos e restrições legais devem ser retirados, para que os pequenos empresários possam cumprir seu papel essencial na evolução socioeconômica de um país, especialmente no campo da geração de empregos.

Esta é a razão pela qual foi incluído entre os princípios constitucionais da ordem econômica (art. 170, IX, da Constituição Federal) o “tratamento favorecido para empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”. O art. 970 do Código Civil tem redação ainda mais clara, ao prever que “a lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes”. Estas normas geraram importantes frutos, entre os quais se destaca a legislação que cuida das microempresas e empresas de pequeno porte, que atualmente são regidas pela Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006.

Esta lei prevê uma série de conhecidas facilidades tributárias e contábeis, mas também trata de outros aspectos, com a simplificação do procedimento de deliberação social e a dispensa de apresentação de certidões negativas de débitos tributários e previdenciários para a prática de qualquer ato societário frente ao registro empresarial. Este último aspecto é o que nos interessa.

Em operações de alteração no controle societário, de redução do capital social, de transformação, de incorporação, de fusão, de cisão, ou de extinção da sociedade, exige-se, em regra geral, a apresentação de quatro certidões negativas para o arquivamento do ato na Junta Comercial: certidão negativa conjunta de tributos federais, certidão negativa de débitos previdenciários, certidão negativa de tributos estaduais e certidão de regularidade frente ao FGTS. Mas as microempresas e empresas de pequeno porte foram dispensadas de tal exigência com o art. 9.º, § 1.º, II, da Lei Complementar 123/2006.

Estruturas societárias de pequeno porte econômico raramente participam de operações de incorporação, fusão, cisão ou transformação. Não é comum que elas procedam a uma redução no valor de seu capital social. Assim, a norma tem relevância material somente no campo da extinção das sociedades.

Em princípio, somos todos contra o fisco. Não nos conformamos com o nível de arrecadação e a sistemática falta de critério na aplicação dos recursos que nos são tomados. Isso sem falar no puro e simples sumiço do dinheiro público. Mas esta justificada contrariedade não pode fundamentar uma postura de aplaudir toda norma que de alguma forma afete os interesses do fisco. Até mesmo porque o benefício indevidamente concedido a alguns redunda no aumento da carga tributária imposta aos demais. Se a carga tributária é alta (como evidentemente é) devemos buscar uma redução equitativa para todos, e não cerrar os olhos à fuga de alguns, com outros assumindo a responsabilidade de manutenção do nível de arrecadação.

No caso da dispensa de apresentação de certidões negativas de débitos tributários e previdenciários para a formalização da extinção de microempresas e empresas de pequeno porte (medida que não extingue a responsabilidade tributária, mas cria um indevido conforto aos envolvidos, especialmente no campo da facilitação à constituição de novas estruturas empresariais), acreditamos ter sido concedido um benefício logicamente torto, e prejudicial ao panorama econômico brasileiro.

O primeiro dos defeitos da norma é percebido quando recordamos que a lei deve incentivar a criação e manutenção de unidades empresariais, sejam de pequeno ou de grande porte. Como é óbvio que os pequenos empreendedores (muitos dos quais buscando uma alternativa ao desemprego) são mais sensíveis aos obstáculos burocráticos, a lei deve facilitar a constituição de sociedades, seja por meio da simplificação do processo, seja pela redução de seus custos. No Brasil, criou-se um sistema bastante eficiente neste sentido, especialmente por meio da disseminação do Sistema Fácil de registro empresarial.

Da mesma forma, deve-se simplificar a vida destas pequenas empresas, seja por meio do afastamento de exigências formais para a condução dos negócios sociais, seja pela simplificação tributária. Também neste campo os progressos têm sido significativos.

Mas, quando se dispensa um empresário da apresentação de certidões negativas de débito no momento da formalização de sua extinção, em nada se está a estimular o desenvolvimento da atividade empresarial. Afinal, se o que se pretende é a extinção, não há mais atividade empresarial a ser desenvolvida. Daí porque afirmamos que a norma é torta no plano lógico. Não se facilita a constituição nem a manutenção de uma atividade empresarial. O que se faz é perdoar o passivo fiscal de empresários que já encerraram suas atividades.

Devemos esclarecer que não se está a afirmar que o processo de extinção de um empresário deva ser complicado e caro. Pelo contrário. O que se questiona é o benefício social derivado da dispensa de apresentação das certidões, limitando o procedimento de baixa do ato constitutivo frente à Junta Comercial a uma simples comunicação (distrato social ou requerimento de empresário individual).

Também é necessário deixar claro que a dispensa de apresentação de CNDs não pode ser vista como um estímulo ao desenvolvimento de novas atividades empresariais de pequeno porte, em razão do prévio conhecimento desta facilidade. Os novos empresários devem contar com o sucesso, e não com o fracasso. Se a possibilidade de baixar o registro de um empresário, mesmo com pendências tributárias, for um estímulo ao empreendedorismo, estaríamos fomentando uma atitude irresponsável de evasão fiscal.

No plano econômico, são dois os desvios principais da regra em análise. Inicialmente, deve-se relembrar que o tributo que um contribuinte não paga será suportado pelos demais. Ampliando-se esta lógica, percebe-se que há um desequilíbrio no próprio quadro de concorrência entre empresários de um mesmo setor, já que alguns podem se sentir estimulados a acumular um passivo tributário, para então extinguir formalmente seu registro e novamente partir para a utilização do mesmo formato, enquanto seu concorrente continua pagando os tributos devidos para manter sua estrutura jurídica.

Outro desequilíbrio que merece destaque é que o benefício está sendo aproveitado por muitos empresários que, após longos anos atuando sem se enquadrar à condição de microempresa ou empresa de pequeno porte, buscam este enquadramento com o simples objetivo de proceder à baixa de seu ato constitutivo.

Vale ainda destacar que o art. 9.º, § 1.º, II, da Lei Complementar 123/06 poderia ter apresentado excelentes resultados econômicos se dispensasse a apresentação de CNDs no processo de recuperação de empresários que estejam passando por dificuldades econômicas. A Lei 11.101/2005 exige a apresentação destes documentos (ou a demonstração do refinanciamento da dívida tributária) após a aprovação do plano de recuperação, fato que dificulta a utilização deste procedimento, a nos faz compreender porque ele ainda é pouco encontrado na prática.

Mas a norma em análise infelizmente não pode ser utilizada como meio para afastar a necessidade de apresentação das CNDs no processo de recuperação. Seu texto é claro, ao dispor que a dispensa ocorre no “arquivamento, nos órgãos de registro, dos atos constitutivos de empresários, de sociedades empresárias e de demais equiparados que se enquadrarem como microempresa ou empresa de pequeno porte”. Ou seja: a dispensa ocorre no âmbito da Junta Comercial (órgão de registro), e não no do Poder Judiciário, o que limita materialmente a aplicação da regra, pelas demais razões já expostas, ao caso de extinção da sociedade ou do empresário individual.

Assim como é inquestionável a necessidade de estimular o empreendedorismo (o que passa pela redução da absurda carga tributária a que os empresários estão sujeitos no Brasil), parece claro que o desenvolvimento depende de uma situação de justiça na distribuição da responsabilidade pelo pagamento dos tributos, evitando-se que alguns paguem mais do que os outros. É exatamente o contrário o que se verifica no contexto da aplicação material da regra constante do art. 9.º, § 1.º, II, da Lei Complementar 123/2006.

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