Exigência de capital social mínimo para participação em licitações públicas

De acordo com o art. 31, §§ 2.º e 3.º da Lei de Licitações (Lei 8.666/93), a administração pública pode incluir nos editais a exigência de capital social mínimo, quando o certame licitatório tiver por objeto compras para entrega futura ou execução de obras e serviços. O capital mínimo exigido não pode ser superior a 10% do valor do contrato administrativo. Acreditamos que a inserção desta exigência nos editais não gera qualquer benefício à administração pública; e, por limitar a participação de potenciais concorrentes, a medida pode se revelar contrária ao interesse público.

É evidente que o poder público deve se precaver, evitando a contratação de empresários que não apresentem condições financeiras para bem desempenhar as obrigações assumidas. É por tal razão, por exemplo, que o contrato administrativo pode ser rompido pelo ente público quando são externalizados sinais de insolvência do empresário contratado.

Mas a existência de um capital social elevado não conduz necessariamente à conclusão de que a sociedade goza de boa situação financeira. Vale lembrar que o capital social não é igual ao patrimônio social. O capital é um valor lançado no contrato social, enquanto o patrimônio é o conjunto de bens, direitos e obrigações de uma pessoa. Uma vez integralizado, o capital não precisa ser recomposto pelos sócios. A integralização ocorre apenas uma vez. De outro lado, os valores transferidos à sociedade a título de integralização já podem ter sido totalmente consumidos com o pagamento de outras obrigações. Afinal, os credores podem voltar suas execuções contra qualquer bem integrante do ativo da sociedade, mesmo que este guarde vinculação histórica com a integralização do capital social.

Estes dois fatos jurídico-econômicos revelam que uma sociedade de capital social elevadíssimo pode apresentar um baixo patrimônio, ou mesmo estar insolvente, sem que tal situação tenha derivado de prática fraudulenta por parte de seus sócios ou administradores. Ou seja: não há uma relação direta e necessária entre capital social alto e patrimônio social elevado, o que nos faz perceber tanto que está errada a doutrina que afirma que o capital social constitui uma relativa garantia aos credores (como se uma garantia pudesse ser relativa), quanto que ao Estado não existe proveito direto na exigência de um capital social elevado dos empresários participantes de um procedimento licitatório.

Como consequência direta, muitos empresários deixam de participar de licitações por não terem condições de demonstrar um capital social elevado, ainda que tenham uma estrutura mais do que suficiente para o cumprimento do contrato administrativo objeto da licitação. Assim, o principal efeito da exigência de capital social mínimo é a limitação do número de concorrentes. E tal limitação, como é evidente, gera danos ao Estado, na medida em que deixam de ser colhidas propostas melhores do que aquelas apresentadas pelos concorrentes. Quanto maior o número de participantes no procedimento licitatório, melhor para o interesse público.

E a questão merece ainda ser analisada sob outro enfoque, visto que a nossa legislação apresenta falhas graves no momento em que regula a forma de integralização do capital social em sociedades limitadas. Os principais pontos falhos de nossa normatização residem na autorização de integralização do capital social por meio da transferência de propriedade de qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação econômica, bem como na regulação do procedimento de avaliação destes bens.

Quando a integralização envolve a transferência de bens, não se exige que os mesmos tenham destinação empresarial, sendo possível a utilização de bens inúteis ao desenvolvimento da atividade empresarial. Também é possível a utilização de bens intangíveis, que apresentam grandes dificuldades de avaliação precisa. Facilita-se, desta forma, uma elevação de capital social que não corresponda a um efetivo investimento na estrutura empresarial.

Independentemente da natureza do bem utilizado, o mesmo deve passar por um processo de avaliação, para que se revele o valor pelo qual o mesmo será transferido à sociedade. Nas sociedades limitadas brasileiras, esta avaliação é feita diretamente por deliberação dos sócios. Trata-se de procedimento mais simplificado do que o exigido nas sociedades anônimas, em que a avaliação é feita por peritos, cujos laudos são aprovados ou rejeitados pela assembleia.

A previsão legal de um procedimento mais simplificado para as sociedades limitadas está claramente fundada no objetivo de afastamento dos custos de avaliação por parte de peritos ou de empresa especializada. Mas cremos que os prejuízos que podem advir desta economia revelam o equívoco da opção do legislador.

O mecanismo de avaliação dos bens para a integralização do capital social deve ser rigoroso, para que se evite a sobre avaliação de bens. Se não houver um mecanismo eficaz de responsabilização dos envolvidos na avaliação, facilita-se a atribuição de valores superiores aos reais, gerando uma integralização aguada do capital social, essencialmente prejudicial aos interesses dos credores da sociedade. É por tal razão que diversos ordenamentos jurídicos preveem a necessidade de participação de peritos para a avaliação de bens em integralização de capital social de sociedades limitadas.

É certo que o Código Civil previu a responsabilidade das pessoas diretamente envolvidas na avaliação, impondo-lhes o dever de reparar os prejuízos decorrentes de avaliação fraudulenta (§ 1.º do art. 1.055). Contudo, a norma é de difícil aplicação concreta, na medida em que haverá necessidade de demonstração de culpa ou dolo por parte dos sócios; tarefa difícil, principalmente quando a avaliação envolve um bem que não é usualmente explorado na atividade empresarial. Deveria a lei prever a participação de peritos no processo de avaliação de bens em integralização de capital social de sociedades limitadas. O efeito seria um processo muito mais cuidadoso de avaliação, em decorrência da possibilidade de responsabilização direta do perito, já que o erro flagrante na avaliação caracteriza, no mínimo, a imperícia do expert.

Lançados os fatos, as conclusões são óbvias: de um lado, muitos empresários competentes não têm condições formais de participar dos certames licitatórios; de outro, muitos daqueles que participam o fazem com base em um capital social de existência meramente formal, sem correspondência efetiva no patrimônio social; no final, a administração pública impõe uma injustificada restrição à participação em licitações, deixando de colher propostas mais vantajosas sob a ótica do interesse público.

As mudanças legislativas para que estes efeitos negativos sejam afastados são simples. Bastaria eliminar os §§ 2.º e 3.º do art. 31 da Lei de Licitações. E a oportunidade ainda poderia ser aproveitada para corrigir as normas relativas à integralização do capital social em sociedades limitadas. Resta saber se nossos políticos têm mesmo interesse em uma maior concorrência em certos procedimentos licitatórios.

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