(Mais uma) Crítica ao ensino jurídico no Brasil

Ainda que seja absolutamente desnecessário mais um texto afirmando a ineficiência do ensino jurídico brasileiro, vale tentarmos uma investigação a respeito dos aspectos que poderiam ser reformados. Em síntese, vou defender a tese de que nossos alunos de graduação devem, em uma primeira etapa, estudar mais; depois disso, devemos fazê-los estudar melhor. E a obviedade desta fórmula revela a precariedade da situação.

Acredito que o ensino da ciência jurídica passa por três fases: compreensão, fixação e crítica. Os professores dão cumprimento à primeira quando explicam aos seus alunos o significado das fórmulas jurídicas. A segunda fase caberia principalmente aos alunos, por meio da revisão dos conteúdos apresentados nos semestres anteriores. Já a crítica demandaria um amadurecimento maior dos conteúdos, e seria aprimorada pela vivência e percepção do caráter multidisciplinar dos fenômenos jurídicos.

Os cursos de graduação em direito, entretanto, têm focado quase exclusivamente na fase da compreensão. Se considerarmos que as fases de fixação e crítica podem ser supridas pela atuação individual dos estudantes, poderíamos concluir que os prejuízos não seriam assim tão grandes. Mas esta conclusão somente seria válida se as faculdades fossem competentes no fornecimento da compreensão, e se parte significativa dos alunos demonstrasse interesse em buscar a fixação dos conteúdos e o enriquecimento das leituras por meio de estudos não obrigatórios. E nenhuma destas premissas poderia ser adotada hoje.

Mesmo que acreditássemos que o ensino jurídico pudesse ser resumido à fase da compreensão técnica dos conteúdos, não deixaríamos de concluir que as faculdades estão longe de cumprir esta missão básica. Os exames da OAB e os concursos jurídicos não nos permitem pensar o contrário.

O que se percebe é que os professores têm seguido um caminho inverso ao da evolução do direito. Enquanto a ciência jurídica ganha maior complexidade, como consequência lógica da evolução das relações econômicas e sociais, os professores têm cada vez mais reduzido os conteúdos aos mais básicos dos conceitos. Muitas vezes, um conteúdo é pretensamente estudado sem que se chegue a examinar a legislação de regência. Ditam-se conceitos, procede-se a uma classificação qualquer, emenda-se com uma história (para descontrair, porque ninguém é de ferro) e dá-se por cumprida a missão. E assim são ministradas aulas agradavelmente leves, e danosamente superficiais.

A este comportamento soma-se o conformismo da significativa parcela de alunos que não deseja se ver pressionada pelo estudo. Há pouca oposição aos engodos. Usualmente, os inconformados estudam sós.

Quando somamos a pouca cobrança dos professores com o conformismo da maior parte dos alunos, chegamos a produtos finais óbvios e indesejados: egressos que desconhecem os mais básicos conteúdos da ciência jurídica; bacharéis incapazes de escrever um período sem algum erro de concordância; trabalhos de conclusão de curso (que deveriam refletir um tema que o formando domina) tão vazios que por vezes parecem piadas de mau gosto. Ou seja, um retrato de uma realidade nacional bem descrita por Fábio Giambiagi (Brasil, Raízes do Atraso: Paternalismo x Produtividade), ao afirmar que “o país foi invadido pela mediocridade, ou seja, por uma combinação de falta de apreço pelo mérito, exaltação das coisas sem importância e ausência de obsessão pela excelência.”

Para que uma nova realidade possa ser construída, o caminho parece (e é) óbvio: estudar mais. Não há alternativa. O direito não é feito de conceitos e classificações, envolvendo também legislações complexas e regulamentos quilométricos. Não os conhecer significa não estar preparado para atuar profissionalmente.

Podemos tomar como exemplo o direito empresarial, matéria que leciono há alguns anos. Este ramo do direito (que é por muitos considerado um mero e desimportante apêndice do direito privado) é normalmente ensinado em quatro semestres, com uma ou duas aulas por semana. Vários são os conteúdos a serem vencidos. Após a teoria geral, deve se estudar os estabelecimentos empresariais, a propriedade industrial, o direito concorrencial, o registro empresarial, o direito societário, os títulos de crédito, o processo falimentar, a recuperação de empresas e os contratos empresariais. Vamos focar um pouco mais em uma matéria de minha predileção: o direito societário. Neste campo, deve se estudar a teoria geral das sociedades, as formas societárias ditas menores (sociedade simples, sociedade em comum, sociedade em conta de participação, sociedade em comandita por ações, sociedade em nome coletivo), para então analisar com maior profundidade as sociedades limitadas e as sociedades anônimas. E não é só. O estudo também deve compreender os movimentos societários (fusão, incorporação, cisão e transformação), os grupos societários, os consórcios, as joint ventures e outras formas de organização. São muitos os temas. Assim, vamos tomar um como exemplo. Não as sociedades anônimas (cuja legislação básica de regência tem 300 artigos, alguns quase indecifráveis). Vamos olhar com mais atenção para as sociedades limitadas. Somente no livro que escrevi sobre esta espécie societária, há 270 tópicos, entre capítulos e seções. Qualquer deles envolve a compreensão da legislação básica, da jurisprudência, dos regulamentos, do direito comparado e, principalmente, do mundo ao qual estes conceitos se aplicam. Voltando, contudo, à realidade de nossas salas de aula, percebemos que a maior parte de nossos alunos não vai muito além do conceito de empresário.

Se não é possível que em um curso de graduação sejam vencidos todos os conteúdos de todas as matérias, ao menos se deveria buscar fazer mais. Se algum professor acredita que a alternativa à impossibilidade de ensinar tudo é não ensinar nada, este professor deve rever seu papel acadêmico, e abrir espaço àqueles que têm maior disposição para trabalhar. Não há segredo. Se os conteúdos técnicos são muitos, a solução é estudar mais. Muito mais.

Se pudermos vencer o desafio de fazer nossos alunos estudarem mais, poderemos partir para a próxima fase na construção de uma nova realidade para o ensino jurídico: estudar melhor.

Outra infeliz percepção dos hábitos de estudo de nossos graduandos é que os esforços têm por meta quase exclusiva a realização das tão temidas provas. O comportamento normal é dar por cumprida a missão de estudar uma dada matéria no exato momento em que a nota de aprovação é divulgada. Tal comportamento somente seria justificável se o objetivo da faculdade fosse a aprovação nas provas, e não a preparação para uma carreira.

Ao se abandonar os conteúdos anteriormente estudados, estes cairão no esquecimento. É comum percebermos nos alunos algum domínio da matéria do semestre, somado a uma certa familiaridade com os temas do semestre anterior e a um absoluto desconhecimento a respeito de tudo o que veio antes. Daí os resultados desastrosos em exames da OAB que nada mais fazem do que exigir o básico do básico.

Aos alunos e aos cursos cabe a adoção de estratégias de manutenção (fixação) dos conteúdos anteriormente compreendidos. Uma boa revisão semestral costuma ser bastante eficiente (e é muito menos trabalhosa do que ter que aprender tudo de novo nos cursinhos), e pode ser somada a outras estratégias mais criativas.

Somente após estarem ultrapassadas as fases da compreensão e da fixação, poderemos buscar uma crítica eficiente. Não aquela crítica pueril, limitada a pedradas em tudo o que se vê, mas a crítica adulta, bem fundada em uma visão sistemática do direito, e enriquecida com a relação com outras ciências, como a história, a sociologia, a economia e a filosofia. Somente assim os bacharéis saberão o que fazer diante de uma lide. Não só no plano técnico, como também no humano.

Talvez esta meta pareça ilusória. Mas não é. Se os estudantes de medicina podem estudar como estudam; se os estudantes das engenharias podem estudar como estudam; se os estudantes de quase todas as demais ciências podem estudar como estudam, podemos cobrar mais dos estudantes de direito.

O curioso é que, se pensarmos nos interesses envolvidos, perceberemos que o movimento deveria ser exatamente o oposto. Deveriam ser os estudantes os postulantes das mudanças em busca da qualidade. Afinal, são eles os principais prejudicados pela má formação. São eles que se verão impossibilitados de lutar pelas poucas vagas no mercado de trabalho, quando se encontrarem sós, com seu belo diploma debaixo do braço.

Mas há outros prejudicados. No final, todos somos. Em um país em que não se ensina o direito dificulta-se a obtenção da justiça, cala-se o debate social e abandona-se a construção de um projeto político.

Não são poucos os analistas da realidade social que afirmam que os mais eficientes projetos de desenvolvimento são aqueles que nascem na sociedade civil. Dentre os agentes da sociedade civil, são os estudiosos e aplicadores do direito aqueles de quem mais deveria se esperar uma atuação no sentido da construção de uma sociedade melhor. Afinal, o substrato de seu trabalho diário, o objeto de suas reflexões cotidianas, é a justiça. A busca pela justiça não é, para estes profissionais, algo complementar. É a sua especialidade. Ou melhor: seria, se houvesse preparo acadêmico para tanto.

Profissionais do direito, capacitados a atuar na busca pela justiça, não são feito apenas de retórica afetada e alegado bom senso. São feitos de estudo. Estudo que, se não se tornar um hábito consolidado na faculdade, não vingará nas comprometidas carreiras profissionais que seguem a cursos mal concluídos.

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