Os juristas face às novas tecnologias

O surgimento de novas tecnologias (como a robótica, a nanotecnologia, a biologia sintética, a inteligência artificial, dentre outros) é um fenômeno irreversível e irrefreável, que é capaz de impactar de forma definitiva o futuro do planeta e a perpetuidade da nossa espécie. Diante desse cenário torna-se relevante refletir sobre o papel dos juristas na regulação e desenvolvimento desse setor.

Insuficiência do Estado

Em meio a tantas polêmicas e incertezas, um ponto parece pacificado: a impossibilidade de o Estado conseguir, por si só, resolver as questões decorrentes do surgimento das novas tecnologias.

Ainda que houvesse um Estado extremamente eficiente, habilitado em cercar-se dos melhores políticos e juristas, seria ingênuo acreditar na sua capacidade de acompanhar o ritmo das inovações que surgem a cada momento, seja porque se tratam de fenômenos extremamente rápidos e complexos, seja pelo fato desses inventos comumente extrapolarem as barreiras territoriais. Algumas tecnologias são tão sutis que não se consegue nem mesmo rastrear os seus originadores, como é o caso da criptografia.

Em se tratando de inovações e de tecnologia, não seria razoável, portanto, esperar que o Estado tenha capacidade de pronunciar-se tempestivamente e de regulá-las pelo tradicional e ainda predominante mecanismo de sanções.

Insuficiência da Auto Regulação

Por outro lado, esperar que a própria sociedade se autorregule pode ser perigoso, pois nem sempre os agentes sociais envolvidos tomarão condutas alinhadas ao bem maior da comunidade. Assim, se a classe em questão tiver como meta a maximização dos interesses de sua própria categoria, a autorregulação sem o devido controle da sociedade pode ser equivalente a entregar as “ovelhas” aos “lobos”. Nesse caso, a retração do direto frente à liberdade individual pode gerar o colapso do setor em questão, além de graves problemas com os quais toda a sociedade terá que lidar posteriormente, como aconteceu com crise dos subprime, que afetou a economia norte americana.

Se tanto o Estado como os setores específicos da sociedade parecem não dar conta de regular o direito isoladamente, o que fazer então? Proibir que os programadores e especialistas em tecnologia sigam inovando?

Sem entrar no mérito da sua constitucionalidade, trata-se de proposta irrealizável. Como controlar a conduta privada de mais de 7 bilhões de pessoas? Qual seria a instituição com competência e legitimidade para isso? Faz sentido tornar a tecnologia um ilícito pelo simples fato de não se poder prever o seu efeito em longo prazo?

A Tecnologia e o Nosso Papel

A verdade é que a tecnologia em si não é o problema ou solução para os males sociais e ambientais. Esta não é a vilã e, muito menos, a heroína desse enredo. Ela simplesmente potencializa e acelera o impacto social e ambiental do homem contemporâneo no ecossistema, podendo esse impacto ser positivo ou negativo. A conectividade e o aumento do fluxo de informações entre os povos tanto tem o potencial de gerar colaboração e a empatia, como o reverso podendo aflorar as diferenças, disputas e guerras pelo poder.

Se usadas com responsabilidade – considerando que somos um sistema integrado e altamente complexo – as novas tecnologias podem contribuir para a resolução de inúmeros problemas e colaborar para a criação de uma sociedade mais justa e equilibrada. Por outro lado, o uso dessas mesmas tecnologias para a maximização do lucro desenfreado de uma classe, sem considerar os efeitos dessas escolhas frente à comunidade e ao planeta, levará (segundo pesquisas), num curto espaço de tempo, os recursos naturais ao seu limite e colocará a nossa civilização em risco.

Assim, chegou a hora de escolher como usaremos esses recursos. E essa escolha refletirá a forma como observamos o mundo, isto é, a nossa ética, valores e paixões, sendo esses os elementos que nos movem. Por séculos cultivamos uma cultura em que crescimento e acumulação eram sinônimo de desenvolvimento. Gerações e gerações viveram essa busca por acumular conhecimento, produtos, influência e poder. Por outro lado, pecamos quanto ao olhar sistêmico, o respeito aos outros seres da mesma e de outras espécies. É hora de corrigir essas distorções, de imprimir humanidade e ética genuínas à sociedade e de aprender a usar o conhecimento a favor de todos.  A ironia é que quanto mais as tecnologias se desenvolvem, cresce na mesma proporção a necessidade de revisitar nossa conexão com o universo, com a comunidade e conosco mesmo.

O resultado dessa história ainda não está definido. No entanto, é necessário, antes de tudo, nos conscientizar de que essas são questões a serem tratadas em âmbito individual e social. No plano individual é importante que estejamos dispostos a refletir profundamente sobre os valores a partir dos quais atuamos no mundo, a fim de reformar os padrões geracionais inadequados. Somente a partir desse novo olhar será possível nos despir dos preconceitos e conceitos classistas e “especicistas”[1] para lidar com as diferenças e com as semelhanças em relação ao outro.

No social é essencial que tenhamos humildade para perceber que, sozinhos, não conseguiremos regular essas questões, sendo urgente que estejamos abertos a dialogar e a construir conhecimento e soluções com todos os seguimentos sociais. Para lidar com a questão da inovação é preciso muito mais que uma lei, política estatal ou um código de autorregulação, passando essa solução pela construção de uma uma nova cultura e de uma democracia mais complexa, integrada e participativa, em que imperem valores mais nobres, contemplando o interesse de todos os seres vivos. É preciso que os cidadãos saiam da usual posição de vítimas e assumam o papel de protagonistas.

Essa democracia envolveria a disseminação de um direito mais participativo, nos moldes lecionados pelo ilustre historiador e jurista português António Manuel Espanha[2]. Porém, como dito acima, esse não é um texto de respostas, mas sim de perguntas. Fica aqui o convite para que cada um reflita que papel deseja ter no desenrolar desse enredo.

[1] Por “especicismo” refere-se à filosofia que considera que os somente os serem humanos são dignos de direitos em detrimento de todas as outras especies de seres vivos do planeta.

[2] HESPANHA, António Manuel. Pluralismo jurídico e direito democrático. São Paulo: Annablume, 2013.

 

Rachel de Oliveira Sampaio de Andrade, advogada do escritório Marins Bertoldi Sociedade de Advogados.

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