Os dois lados do fair trade

De acordo com a IFAT (International Federation of Alternative Trade), Fair Trade seria “uma parceria comercial, baseada em diálogo, transparência e respeito, que busca maior equidade para o comércio internacional. Ele contribui para o desenvolvimento sustentável por meio de melhores condições de troca e garantia dos direitos para produtores e trabalhadores marginalizados principalmente do Sul”.

A principal distorção que se pretende combater é a exploração da mão de obra no momento inicial da produção de determinados bens de consumo. Investiga-se, por exemplo, qual é a relação entre o preço de uma xícara de café e o valor pago aos trabalhadores que fazem a sua colheita, ou aos pequenos produtores da América Central.

É claro que tal ordem de análise produz resultados estarrecedores. Em Londres, um cappuccino custa entre 60 pence e 3 libras. Se considerarmos que uma xícara de cappuccino consome 7 gramas de café, e que não se paga mais do que 150 dólares por uma saca do produto, chegamos à conclusão de que o produtor receberia, na melhor das hipóteses, pouco mais do que 3 pence por xícara. Ou seja: entre 1% e 5% do preço final do produto. Haveria, portanto, uma exploração econômica e social dos países produtores de café, concentrados na América Latina, com a riqueza derivada da comercialização do produto concentrando-se nos cofres de empresas detentoras de marcas mundiais, estabelecidas na Europa e na América do Norte. Mais um típico caso da divisão econômica entre o norte e o sul, em que o sul seria a vítima de um processo histórico de exploração.

Este problema pode dar origem a distintas reações. A mais comum entre os latino-americanos é a repetição de um cansativo discurso contra a vilania econômica dos países ricos, que teriam historicamente decretado nossa pobreza. Mas este discurso, além de frágil e equivocado, não é o mais adequado para corrigir as alegadas injustiças. Seria muito mais eficiente procurar novos papéis no cenário econômico mundial, especialmente por meio da inclusão nos mercados de tecnologia. Mas, quando os projetos de poder nacional fundam-se na ignorância popular, é mais conveniente encontrar um culpado externo do que fazer investimentos de longo prazo em educação (primeiro passo para o desenvolvimento econômico).

Outra forma de reação foi o fortalecimento do movimento do fair trade. A partir do momento em que se percebe a injustiça envolvida no preço de uma xícara de cappuccino, parece razoável que os consumidores aceitem pagar um pouco mais pelo produto final, com a garantia de que o excedente será repassado aos produtores, marginalizados na rede de comércio mundial. Trata-se de uma atitude nobre, mas que, infelizmente, pode ser utilizada de maneira completamente deturpada.

Para perceber as distorções possíveis, basta voltar ao exemplo da xícara de cappuccino em Londres. No livro O Economista Clandestino (Editora Record, 2007), Tim Harford expõe a seguinte situação: uma das maiores redes britânicas de café, a Costa Coffe, passou a oferecer aos seus clientes a possibilidade de consumir o café fornecido pela Cafédirect, uma das primeiras empresas a levantar a bandeira do fair trade. Quando se consumia uma xícara de cappuccino feita com o produto da Cafédirect, pagava-se 10 pence adicionais, com a convicção de que o valor seria repassado aos produtores da América Central. Descobriu-se, contudo, que as coisas não se davam bem assim. O ágio pago pela Cafédirect aos produtores da Guatemala variava entre 40 e 55 pence por libra (cerca de 453 gramas de café). Fazendo novamente as contas, este valor deveria repercutir em 1 pence por xícara de cappuccino, e não no décuplo deste valor. Ou seja: fazendo seus clientes acreditarem que estavam promovendo a justiça social ao pagarem 10 pence a mais por xícara, a empresa tinha um lucro adicional de 9 pence por unidade, repassando aos produtores guatemaltecos apenas 10% do adicional pago pelos conscientes consumidores ingleses. Com a revelação deste quadro, a empresa abandonou a prática de cobrar o adicional, no final de 2004.

Não se pretende com a exposição deste quadro criar uma falsa impressão de que todo o movimento do fair trade é uma enganação. Ao contrário, os resultados positivos são extremamente significativos e, se não resolvem o problema da divisão Norte-Sul da economia mundial, conferem maior dignidade a milhares de trabalhadores que não são explorados pelos consumidores de café britânicos, e sim por atravessadores bem brasileiros.

Mas os órgãos de proteção ao consumidor devem ficar atentos. Afinal, o fortalecimento de práticas comerciais justas depende especialmente de dois fatores: conscientização do público consumidor e credibilidade da certificação. Deve-se atuar para evitar que o caráter naturalmente solidário de nosso povo seja anulado por sua justificada desconfiança.

No Brasil, há duas realidades no campo do comércio justo. Existem 31 empresas certificadas pela FLO (Fair Trade Labelling Organisations International, principal órgão certificador mundial, de grande credibilidade), centradas na produção e comércio internacional de café e suco de laranja.

Já no plano interno, a Secretaria Nacional de Economia Solidária identificou, ainda em 2005, 14.954 empreendimentos ligados ao fair trade. Nestes casos, não há propriamente uma certificação, mas uma estratégia unilateral de divulgação de práticas justas nas relações com trabalhadores e produtores. Aí está o problema que deve ser solucionado.

Não há no Brasil um órgão de certificação desta atividade, ao contrário do que ocorre em outros países, como o México. Facilita-se, desta forma, a atuação de agentes econômicos que adotem estratégias de marketing que falsamente vinculem o produto a uma prática de comércio justo.

Para que o consumo consciente possa crescer de forma plena, cabe ao governo brasileiro agir em dois campos. De imediato, os órgãos de defesa do consumidor devem combater eventuais casos de falsa atribuição de práticas de fair trade. Mas os resultados serão sempre limitados se não houver a criação de um órgão nacional de certificação, fato que elevará o nível de confiança do público consumidor e estimulará mais agentes econômicos a adotar tais práticas, seja por questões éticas, seja para não perder campo frente a seus concorrentes.

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