Sociedades unipessoais de responsabilidade limitada

Na década de 1980, os europeus conceberam a figura da sociedade unipessoal de responsabilidade limitada. Ela foi o meio jurídico encontrado para limitar os riscos dos empreendedores individuais, estimulando-os ao investimento. No Brasil, por enquanto, não existe autorização legal para a constituição de sociedades limitadas com apenas um sócio. Apenas se admite que, após a sua constituição, a sociedade tenha o quadro de sócios reduzido a um, pelo prazo máximo de 180 dias (art. 1.033, IV, do Código Civil). Mas, na esteira do direito europeu, é certo que no futuro breve teremos uma lei neste sentido. E o que parece ser um ato de modernização de nosso direito societário pode se tornar uma medida inócua, se não for resolvido outro problema: o exagero na desconsideração da personalidade jurídica.

A lei que pela primeira vez previu a possibilidade de uma sociedade limitada ser constituída por apenas um sócio foi editada na Alemanha, em 1980. Na França, a possibilidade foi contemplada na reforma do Código das Sociedades Comerciais, em 1985. Quatro anos depois, foi editada a XII Diretiva da Comunidade Econômica Europeia, que motivou a adoção desta espécie societária em toda a Europa.

Pode parecer estranho que uma sociedade seja criada e mantida com apenas um sócio. Contraria-se a boa lógica, que parte da simples e correta premissa de que uma sociedade é, essencialmente, uma reunião de pessoas. Pessoas, no plural, e não pessoa, no singular. Se nos limitássemos a esta linha de raciocínio, poderíamos concluir que a sociedade unipessoal seria um absurdo jurídico. E concluiríamos mal.

As leis europeias que autorizaram a constituição destas sociedades foram concebidas com um objetivo claro: incentivar o desenvolvimento de atividade econômica de pequeno porte. E foram bem sucedidas.

Antes das referidas leis, o direito europeu dava aos sócios de uma sociedade limitada um tratamento muito mais protetivo do que o oferecido aos empresários individuais. Os integrantes de uma sociedade limitada gozavam do benefício da limitação de responsabilidade pessoal em relação às dívidas da sociedade. Segundo a regra geral, os sócios somente respondiam pela integralização do capital social. Se o capital estivesse integralizado, e a sociedade não tivesse condições de pagar as suas dívidas, a solução seria a decretação da falência da sociedade, e não a responsabilização dos patrimônios pessoais dos sócios. Já os empresários individuais não tinham nenhuma forma de limitação de sua responsabilidade. O fracasso no desenvolvimento da atividade empresarial levava à responsabilização de todo o seu patrimônio pessoal, atingindo-se não só os bens e direitos vinculados à exploração da atividade empresarial, como também os bens e direitos particulares do empresário.

A conclusão era evidente: ser empresário individual era muito mais arriscado do que ser sócio de uma sociedade limitada. Esta distinção de tratamento, e de riscos, gerava um problema de ordem econômica. Os empreendedores se viam obrigados a constituir uma sociedade (com todos os litígios em potencial derivados da divisão de poderes entre os sócios) ou a assumir riscos pessoais maiores (o que é um resultado economicamente ineficiente, na medida em que os riscos são naturalmente considerados na precificação dos produtos ou serviços oferecidos ao mercado).

Diante deste problema, o legislador europeu encontrou um caminho lógico coerente com os princípios do direito empresarial. Por meio do alargamento do conceito de sociedade (permitindo a unipessoalidade originária), aproximou o empreendedor individual do regime jurídico oferecido aos sócios de uma sociedade limitada. O resultado foi uma diminuição dos riscos jurídicos envolvidos no empreendedorismo individual, e a consequente expansão das atividades econômicas de pequeno porte.

No Brasil, a questão das sociedades unipessoais de responsabilidade limitada é um clássico nos debates acadêmicos. Praticamente todos os autores defendem a sua adoção. E tudo indica que em breve as veremos no plano normativo. O PLC 118/2007, em trâmite no Senado (derivado do PL 3667/2004, originado na Câmara), prevê a possibilidade de as sociedades limitadas (assim como as sociedades simples) serem constituídas com apenas um sócio.

A reforma é bem-vinda, não há dúvida. Mas os benefícios econômicos não serão percebidos, a menos que seja solucionado outro problema de aplicação do direito societário, ainda mais sensível: o exagero na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

A desconsideração da personalidade jurídica foi concebida como uma exceção ao princípio da autonomia patrimonial. De acordo com este princípio, o patrimônio da sociedade não se confunde com os patrimônios pessoais dos sócios. Assim, as dívidas da sociedade devem ser pagas com os bens e direitos encontrados no patrimônio social. Esta é a regra lógica que permite a limitação da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais.

A limitação da responsabilidade foi um inegável benefício concedido aos empreendedores, e que impulsionou enormemente o desenvolvimento econômico dos países a partir do momento em que a regra foi adotada. Mas, desde o início da aplicação do princípio da autonomia patrimonial às sociedades limitadas (no final do século XIX), fraudes foram praticadas por meio da utilização das pessoas jurídicas. Em sua formulação mais simples, tais fraudes consistiam em concentrar as dívidas em uma pessoa jurídica, protegendo os ativos por meio de alocação formal em outro patrimônio, de outra pessoa (usualmente, dos próprios sócios).

A reação do direito a tais fraudes foi imediata. Concebeu-se a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que afastava o princípio da autonomia patrimonial (e permitia a responsabilização do patrimônio de todos os envolvidos para o pagamento das dívidas) quando houvesse a comprovação de fraude. Dentro deste sistema, o benefício da limitação da responsabilidade seria a regra geral, que só poderia ser afastada excepcionalmente, quando se comprovasse a atuação fraudulenta por meio da utilização da pessoa jurídica.

No Brasil, contudo, criou-se um sistema peculiar, e nada eficiente, de desconsideração da personalidade jurídica. Ainda que a lei diga o contrário, respeitando o princípio da autonomia patrimonial e a regra da limitação da responsabilidade (vejam-se os arts. 50 e 1.052 do Código Civil), o entendimento mais encontrado nos julgados vem no sentido de autorizar a desconsideração da personalidade jurídica sempre que os bens e direitos da sociedade forem insuficientes para a satisfação de suas dívidas. De exceção, a desconsideração tornou-se uma nova regra, segundo a qual a limitação da responsabilidade não existe, com os sócios sempre tendo seus bens e direitos pessoais atingidos em caso de insolvência da sociedade.

Quando comparamos a evolução do direito societário europeu com a verificada em nosso país, percebemos que nossa estratégia foi diametralmente oposta à deles. Na Europa, aproximou-se o empreendedor individual do regime jurídico (de limitação de responsabilidade) criado para os sócios de sociedades limitadas. No Brasil, aproximaram-se os sócios de sociedades limitadas do regime jurídico (de responsabilidade pessoal e ilimitada) ainda previsto para os empresários individuais.

Este fato motiva o alerta. Não adianta aprovar uma lei permitindo que uma sociedade limitada seja criada por apenas um sócio enquanto nossos tribunais não compreenderem e aplicarem o princípio da autonomia patrimonial aos sócios das sociedades limitadas em geral. Antes de debatermos a unipessoalidade originária em sociedades limitadas, devemos disseminar um conceito bem mais simples: o de sociedade limitada.

A breve análise comparativa entre o direito europeu e o brasileiro dá a entender, em análise superficial, que estamos duas décadas atrasados, por não autorizarmos a constituição de sociedades limitadas com apenas um sócio. Mas a situação é muito pior. Estamos um século atrasados, já que não compreendemos o conceito de limitação de responsabilidade. Somente depois de entendermos o que é uma sociedade limitada será útil autorizarmos a unipessoalidade originária.

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